Já tive mais certezas em relação ao assunto que se referenda no próximo mês. Mesmo sem entrarmos em extremismos (os do Sim certamente não são assassinos sanguinários, os do Não não serão todos fanáticos religiosos e neo-nazis), há dos dois lados argumentos que não me convencem.
Eis então alguns argumentos do não:
a) Desde a concepção há vida. Vida humana. Certamente que há. É vida. E é humana. Mas a verdade é que, digam o que disserem, não valoramos da mesma forma um embrião e um recém-nascido. Ninguém defende, que não seja punida a morte de bebés deficientes, mas o aborto de fetos com mal-formações está previsto na lei; mesmo quem pretende penalizar as mulheres não sugere uma pena igual à do infanticídio; não fazemos funerais religiosos a embriões.
b) As mulheres não devem ir para a prisão, mas devemos manter a pena na lei para mostrar que é algo errado e como factor dissuasivo. Parece-me um caminho perigoso, o termos leis que não são para cumprir, o passar a ideia que há leis que existem mas que na verdade não são aplicadas. É uma solução que se vai usando em várias situações, não só no aborto: o mesmo argumento é usado para o consumo de drogas, para a prostituição, ou até por exemplo quando se define o limite de velocidade em alguns locais em 50 km/h, mas, vá lá, pode ir até 80 que não faz mal. O Rui Tavares fala aqui desta noção de Lei como Ideal, que pode realmente passar a ideia errada do que deverá ser uma lei.
c) O impacto nas finanças públicas. Não sei se este argumento peregrino, que tenta apelar ao que de mais mesquinho há nos portugueses, funcionará ou não, mas revela realmente as preocupações dos defensores da vida. A ideia que passam é que se o aborto fosse só realizado em clínicas privadas, sem mexer nos nossos impostos, não haveria problema. Mesmo que este argumento de contar cifrões num caso de saúde pública fosse razoável, seria facilmente desmontado se contarmos com as despesas existentes no tratamento de complicações resultantes de abortos clandestinos, ou até dos julgamentos das mães que abortam. Como é óbvio, só se conseguirá combater o aborto clandestino se se puder fazê-lo dentro do Serviço Nacional de Saúde; se formos simplesmente permitir a criação em Portugal de clínicas de aborto a situação continuará exactamente como está, apenas com a diferença que quem pode pagar estas clínicas vai deixar de precisar de atravessar a fronteira.
d) De vez em quando ainda ouço do Não o argumento de que se deveria era apostar no planeamento familiar a sério, em vez de partir para a despenalização. Concordo, e seria um bom argumento se não se tivesse já usado este argumento há 10 anos, e pouco ou nada se fez entretanto. É difícil não achar que votar Não será mais do que manter tudo como está.
e) Já cheguei a ouvir até que é ridículo ir para este caminho agora, numa altura em que a população europeia está a estagnar. E conseguem dizer isto com uma cara séria, como se a penalização do aborto fosse uma medida de fomento da natalidade.
Entretanto, o Sim também me apresenta argumentos muito fracos:
a) O Sim como defesa da Liberdade de Escolha. Estando despenalizado, quem quiser abortar aborta, quem não quiser pode não abortar. Parece simplista, e não podemos ir por aí: não podemos simplesmente descriminalizar o roubo dizendo que quem não concordar não rouba.
b) Não vale a pena penalizar porque o aborto sempre existiu e sempre existirá. Mais uma vez, não é argumento: há muito crimes que sempre existiram e sempre existirão; não é esse o motivo para os descriminalizar.
c) Já toda a Europa seguiu este caminho. Como não me considero um lemming, este também não é argumento.
d) Penalizar o aborto é impor um padrão moral de uma parte da população à totalidade da população. É verdade, mas o mesmo se pode dizer, por exemplo, em relação à criminalização da poligamia. Aliás, não será isso aplicável a (quase) todas as leis? Podemos ser optimistas e considerar que existe um conjunto básico de normas do Direito Natural que serão imutáveis, mas até estas normas "imutáveis" mudam de vez em quando...
É verdade que gostaria de ver na lei maior relevo para o aconselhamento e apoio a mães que pretendam abortar. Que gostaria, por exemplo, que estivesse previsto um período de reflexão. E que me fazem um pouco de confusão as tais clínicas de aborto: se o seu negócio é o aborto, não estou a ver que tentem de alguma forma mostrar à mulher que podem existir outras alternativas. Mais uma vez, mesmo aqui, o enquadramento no SNS é também neste ponto uma vantagem.
É verdade que pode haver situações de abuso. Mulheres que abortam repetidas vezes. Mas acredito que isso será sempre a excepção, e custa-me a crer que as mulheres, levianamente, utilizem o aborto como método contraceptivo. Um aborto será sempre uma decisão extremamente difícil, tomada apenas em casos extremos.
Como homem, custa-me também ler o "por opção da mulher", e imaginar que, por exemplo, uma mulher casada pode abortar sem sequer consultar o marido, sem este sequer chegar a saber que a esposa esteve grávida. Compreendo em parte quem diz que se estamos a tirar ao homem o direito de ter opinião na interrupção da gravidez, é difícil perceber como podemos depois exigir deveres de paternidade resultades de uma gravidez que a mãe - e só a mãe - decidiu manter até ao fim. No último referendo, pelo que me lembro, o Não não tinha levantado esta questão, mas desta vez já o vi a ser usado; eu próprio já tinha levantado essa dúvida há uns anos. No entanto, vendo os principais motivos que as mulheres apontam para o aborto parece-me que estes casos de abortar à revelia do companheiro não serão reais. Por outro lado, a verdade no final de contas é que uma gravidez só será realmente levada ao fim se a mulher quiser.
Depois de tudo pesado, ficamos com os factos: o aborto clandestino é hoje um problema grave de saúde pública, com implicações graves na vida de muitas mulheres, em alguns casos levando à morte da mulher. A vitória do Não há 10 anos deixou tudo na mesma, e tudo leva a crer que uma nova vitória do Não tenha novamente o mesmo efeito. A despenalização abrirá o caminho para a regulamentação e o enquadramento no Serviço Nacional de Saúde, e assim minimizar os efeitos negativos que o aborto sempre tem. Por isso votarei Sim.
terça-feira, janeiro 30, 2007
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