Um ano e meio depois voltei a entrar numa sala de cinema. A ausência foi forçada, ainda que pelo melhor motivo possível.
O regresso calhou ser com
O escafandro e a borboleta. O filme é inspirado em factos reais (
a arte imita a vida): Jean-Dominique Bauby, jornalista e editor da Elle francesa, sofre um AVC e, paralisado, passa a poder comunicar apenas através do seu olho esquerdo. É a história de alguém que, recorrendo à imaginação, se tenta libertar do escafandro onde o prenderam (o seu próprio corpo). Se a história do Daniel Day-Lewis parecia difícil, imagine-se com um olho em vez de com
um pé.
Antes do acidente o jornalista tinha já assinado contrato para um livro, que seria uma recriação (
a arte imita a arte) do Conde de Monte Cristo, mas com uma vingadora feminina no século XXI. Acontece que Deus, já se sabe, é um brincalhão com um sentido de humor bastante perverso, e decide transformar o pobre do Jean-Do numa versão século XXI do velho Noirtier, o pai do Villefort do romance de Dumas (
a vida imita a arte, para fechar o ciclo). Noirtier é conhecido por ser a primeira referência literária do
locked-in syndrome, o mesmo de que sofre Bauby (ler o capítulo 59 do Conde de Monte Cristo para mais informações).
O filme é
arte. São os planos perfeitos encontrados por
Julian Schnabel para nos dar a ver o que vê quem pode apenas ver; não será possível sabermos o que é coserem o nosso próprio olho sem que nos cosam o nosso próprio olho, mas o filme coloca-nos lá perto. São as boas interpretações das várias (belas) mulheres da vida de Bauby e de
Max von Sydow, que aparece pouco mas é muito bom no pior papel que a vida nos pode reservar: perder um filho. E é, já agora, o Tom Waits na banda sonora.
O filme é
vida. É a desgraça, mas sem apelar ao sentimentalismo. É o humor (negro) de Bauby, ao mesmo tempo que momentos como o
Chaque jour je t'attends nos impedem de o idealizar, porque cá fora os desgraçados e os coitadinhos podem ser, como toda a gente, bons ou maus, sensíveis ou insensíveis, gajos porreiros ou filhos da puta. Ou, na verdade, nem um nem outro mas ambos. Como toda a gente.