quarta-feira, abril 16, 2008

A arte, a vida e os escafandros

Um ano e meio depois voltei a entrar numa sala de cinema. A ausência foi forçada, ainda que pelo melhor motivo possível.

O regresso calhou ser com O escafandro e a borboleta. O filme é inspirado em factos reais (a arte imita a vida): Jean-Dominique Bauby, jornalista e editor da Elle francesa, sofre um AVC e, paralisado, passa a poder comunicar apenas através do seu olho esquerdo. É a história de alguém que, recorrendo à imaginação, se tenta libertar do escafandro onde o prenderam (o seu próprio corpo). Se a história do Daniel Day-Lewis parecia difícil, imagine-se com um olho em vez de com um pé.

Antes do acidente o jornalista tinha já assinado contrato para um livro, que seria uma recriação (a arte imita a arte) do Conde de Monte Cristo, mas com uma vingadora feminina no século XXI. Acontece que Deus, já se sabe, é um brincalhão com um sentido de humor bastante perverso, e decide transformar o pobre do Jean-Do numa versão século XXI do velho Noirtier, o pai do Villefort do romance de Dumas (a vida imita a arte, para fechar o ciclo). Noirtier é conhecido por ser a primeira referência literária do locked-in syndrome, o mesmo de que sofre Bauby (ler o capítulo 59 do Conde de Monte Cristo para mais informações).

O filme é arte. São os planos perfeitos encontrados por Julian Schnabel para nos dar a ver o que vê quem pode apenas ver; não será possível sabermos o que é coserem o nosso próprio olho sem que nos cosam o nosso próprio olho, mas o filme coloca-nos lá perto. São as boas interpretações das várias (belas) mulheres da vida de Bauby e de Max von Sydow, que aparece pouco mas é muito bom no pior papel que a vida nos pode reservar: perder um filho. E é, já agora, o Tom Waits na banda sonora.

O filme é vida. É a desgraça, mas sem apelar ao sentimentalismo. É o humor (negro) de Bauby, ao mesmo tempo que momentos como o Chaque jour je t'attends nos impedem de o idealizar, porque cá fora os desgraçados e os coitadinhos podem ser, como toda a gente, bons ou maus, sensíveis ou insensíveis, gajos porreiros ou filhos da puta. Ou, na verdade, nem um nem outro mas ambos. Como toda a gente.

2 comentários:

Filipa disse...

Também me reconciliei com a 7a arte com este filme! É fantástico e consegue tratar uma situação dramática quanto absurda de um modo sublime. Gostei muito de ler este post, descreve algo muito parecido com o que sinto.

Rui Dantas disse...

Olá, há quanto tempo.. Obrigado pelo comentário.